Hakani ganha o mundo
Sete anos depois, índia reencontra, durante filmagens de documentário sobre a sua vida, o irmão que a salvou da morte. Obra resgata os horrores do infanticídio
Seria um encontro que resgataria a própria vida. E assim foi. No início de uma tarde de fevereiro, a pequena Hakani, hoje com 12 anos, reencontrou a pessoa que a salvou da morte. E lá estava ele, com 19 anos, esperando-a. Ao vê-la, emocionou-se. Ficou sem palavras. Depois, timidamente, começou a falar na língua que ela entende. Ela, embora não consiga mais falar aquela língua, compreendeu tudo que ele disse. E o abraçou com afeto de gente que gosta. Deu-lhe uma lanterna. Bibi riu. Não foi preciso mais qualquer palavra. Foi a maior e mais verdadeira catarse de sua vida. Aquele encontro trouxe, enfim, a libertação de Hakani.
E, junto com essa libertação, a história ganhou o mundo. O diretor e produtor norte-americano David L. Cunningham veio ao Brasil para contar a vida da indiazinha e a prática do infanticídio na tribo onde ela nasceu. Das mais de 200 etnias que existem no Brasil, 20 ainda levam à morte bebês portadores de deficiência física, gêmeos e filhos de mães solteiras. O documentário, rodado numa reserva em Porto Velho (RO), está pronto. Foi lançado nos Estados Unidos e no Brasil, no início deste mês. O filme, com 36 minutos de duração, leva o nome de sua personagem principal: Hakani. Na última cena, o emocionado reencontro de Hakani e Bibi. Uma rede de televisão brasileira já se interessou em exibir o documentário.
Em outubro do ano passado, o Correio contou, com exclusividade, a história da menina. O drama dela comoveu Brasília. A indiazinha, da etnia suruarrá, semi-isolada do Sul da Amazônia, nasceu com hipotireoidismo congênito — doença que, dentre outras coisas, afeta a produção dos hormônios do crescimento. Na cultura do seu povo, crianças que nascem com algum tipo de deficiência não podem viver. Segundo eles, são seres sem alma e teriam sido gerados por um espírito mau. Assim, a morte é a única solução. É feita, geralmente, com gole de timbó — chá preparado com o veneno de um cipó
Cabe ao pais, portanto, o ritual. A mãe de Hakani, Bujini, mulher forte e boa parideira, não teve coragem de matar a quinta e única filha. O pai, Dihiji, um dos maiores caçadores da tribo, também recuou da missão. Além de Hakani, que contava com 2 anos, Niawi, um ano mais velho, teria nascido sem alma. Também tinha hipotireoidismo. Os pais, em vez de darem o chá venenoso para os dois filhos, resolveram tomar. Morreram agonizando.
Mas a história não acabaria ali. Coube ao irmão mais velho, Aruwaji, então com 15 anos e agora responsável pela família, levar adiante a missão que os pais não tiveram coragem de cumprir. A tribo exigia que Hakani e Niawi fossem mortos. Aruwaji não arredou pé da tarefa. Tentou matar os dois irmãos a pauladas na cabeça. Depois dos golpes, enterrou-os numa cova rasa. Hakani chorou. Niawi não reagiu. Foi enterrado vivo. Há quem ainda tenha ouvido, horas depois, o choro debaixo da terra. Ninguém teve coragem de salvá-lo.
Maior missão
Bibi, com 9 anos, salvou Hakani. Desenterrou-a e passou a cuidar dela, escondido do irmão mais velho. Era o único que lhe dava comida e água. Certa vez, o avô materno tentou matar a menina. Flechou-a entre o peito e o ombro. Mais uma vez, Hakani sobreviveu. Transtornado por não ter conseguido matá-la, o avô se matou. Aruwaji, o irmão mais velho, também fez o mesmo. Ambos tomaram chá de timbó.
A indiazinha seguiu, sozinha, escondida, sob os cuidados de Bibi. Até os 5 anos, quase ninguém sabia de sua existência. Ela pesava 5kg e media apenas 68cm. Não falava nem andava. Foi quando o casal de missionários, Márcia e Edson Suzuki, chegou à aldeia. Lingüistas, eles estudavam os índios suruarrás. Quando souberam da situação da menina, começaram uma verdadeira batalha pela vida de Hakani. A avó materna lhes disse: “Levem essa menina. Não a queremos aqui nem cuidaremos dela”. O frágil Bibi, então, entregou a irmã ao casal.
Com permissão da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Márcia e Edson levaram Hakani para tratamento em Porto Velho e depois em Ribeirão Preto (SP). Diagnosticado e tratado o hipotireoidismo, com alimentação e medicação adequadas, a menina cresceu e engordou. Aprendeu a andar e a falar. Aos poucos começou a não ter medo de gente. E apegou-se ao casal, sem filhos, como nunca havia se apegado a ninguém.
Mas como levá-la de volta à sua terra? Impossível. Ela morreria. Começa a luta de Márcia e Edson para adotá-la. Depois de cinco anos de batalha judicial, o casal, enfim, conseguiu. E ela ganhou um novo nome: Ana Hakani dos Santos Suzuki. Em 2006, a família desembarcou em Brasília. Vivem hoje numa casa na 715 Norte. Hakani estuda a 3ª série no Leonardo da Vinci, na 914 Norte. Adora as aulas de natação e de inglês. Além disso, faz terapia para entender e aceitar melhor sua história.
Protagonista
Hakani se sentiu bem à vontade em todas as cenas de que participou. Ao reencontrar o irmão, quase sete anos depois, disse, arrasando no inglês de criança: “This is my brother”. Bibi não entendeu uma só palavra. Em Washington, de onde retornou na segunda-feira, dia 12, e foi para o lançamento do filme, não se cansava de repetir: “This is my film…”. Aos poucos, a indiazinha consegue esquecer os horrores que viveu.
“Ela não falava sobre o passado. Tinha dificuldade para se reconhecer índia. Reencontrar o irmão foi sua libertação”, diz, comovido, o pai adotivo, Edson Suzuki, 46 anos. Márcia, 45, emenda: “E para o Bibi também foi muito importante rever a irmã. Nunca ninguém tinha dito que ele estava certo. Pela primeira vez recebeu elogios, foi reconhecido e teve a certeza de que fez a coisa certa”.
Hakani, depois de se orgulhar do inglês, ouviu o irmão falar na língua suruarrá. Escutou-o. Por algum motivo, a indiazinha não mais consegue falar a mesma língua. Mas entende tudo. Os pais adotivos ouviam o que ela dizia e traduziam em suruarrá para Bibi. E ela lhe disse, em português: “Quero que você venha comigo para Brasília e estude no meu colégio”. Bibi, que se casou há um mês e virou caçador, agradeceu à irmã. Ela, depois, comentou com a mãe: “O Bibi não ama a cidade. Ele gosta de matar anta pra comer…”
E assim, durante as filmagens do documentário, passaram-se duas semanas de convivência. Tempo inteiro de aconchego, troca de olhares, cumplicidade, afeto. Da parte dele, um pedido discreto de perdão, por não ter conseguido fazer mais. Dela, um grito de felicidade, com sorriso escancarado. Sem dizer uma só palavra, apenas com gestos, Hakani, a sobrevivente, lhe agradeceu pela vida. Essa é uma história que, mesmo com todos os horrores, teria tudo para virar um belo filme. E virou, com final feliz.
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